INTRODUÇÃO
Este livro, não tem a pretensão de descrever tanto a depressão como a síndrome do pânico embasada em estudos científicos. Não possuo credenciais médicas, psiquiátricas ou terapêuticas para ousar falar sobre o mal que se cresceu e agiganta no século XX e XXI.
Tenho sim, partindo de todo sofrimento que que vivi, na pele e na alma, afirmar que, conheci um inferno em vida. Muitos leigos acham, que a depressão seja provocada por crises existenciais, ausência de uma fé inabalável, fruto de uma mente desocupada ou simplesmente preguiça.
Ouvi uma frase doída que me marcou profundamente: - Como é bom ficar deitada esperando que os outros façam tudo pra você!
A maioria, desinformada, vai mais longe: - depressão é doença de rico. - Pobre não tem depressão.
Reafirmam sem volver o olhar para os bancos das praças e os passeios públicos onde milhares de pessoas se aglutinam num total abandono. Perdidas, sem perspectiva alguma são abduzidas por um buraco negro que lhes rouba as forças completamente. Um vazio infinito as paralisa roubando-lhes o cérebro, os músculos, os sonhos, as ideias e a vontade de viver. Falta-lhe forças para banhar-se, locomover-se, sorrir, conversar ou ganhar algum trocado vendendo água, biscoito, ou qualquer guloseimas que lhe mate a fome e a dos seus. Muitos perdem a fome, o paladar, o cheiro das coisas boas numa inapetência tal, que, se não medicadas morrem de inanição.
Relatarei, detalhadamente, tudo que passei com apenas trinta anos de idade.
Escondo-me sob um pseudônimo, para não envolver pessoas que, por desconhecimento da síndrome, atiraram-me setas embebidas no fel da condenação e da culpa. Não, não guardo mágoa nem rancor mesmo porque, na década de 1970 a depressão era ainda uma incógnita para os médicos da psique (alma, mente e espírito).
CAPÍTULO I
Tudo começou numa manhã de 1977, quando, tentei levantar-me para atender as rotinas de uma mãe exemplar. Tinha dois filhinhos para alimentar, vestir e deixá-los no colégio infantil Piuí-Piuí que ficava há duas quadras onde residíamos. Não tive força nenhuma para erguer-me da cama. Uma apatia total tomou conta de mim como se todas as minhas forças tivessem, repentinamente, sugadas. Estava grávida do terceiro filho em apenas dois anos de casada.
Posso explicar: Casei em fevereiro de 1975 e nove meses e cinco dias após ganhei meu primeiro filho. O segundo filho logo se fez presente e no primeiro aniversário do irmão, estava em meus braços com apenas quinze dias de nascido.
Ser mãe foi o maior desejo da minha vida e eu tinha dois meninos lindos e perfeito. Eu e meu esposo queríamos ter mais filhos - somos de famílias numerosas - entretanto queria programa-los para bem depois, realizando-me como professora.
Foi um impacto muito grande ao descobrir que esperava o terceiro filho num espaço tão curto.
Estava, momentaneamente, trabalhando no escritório do meu esposo, contando para isso, com ajuda de parentes e pessoas que cumpriam as rotinas da casa. Sempre trabalhei fora e jamais pensei em depender financeiramente de qualquer homem. Queria dividir todas as despesas da casa e dos filhos. Uma terceira criança mudaria totalmente o curso de minha vida. Tentei vários anticoncepcionais que me fizeram sangrar por 40 dias seguidos. Meu corpo não aceitou nenhum. Enquanto buscava outras formas de segurança engravidei, novamente, no início de 1977. Fui tomada por um pânico tão grande que me jogou na cama. A não aceitação e a rejeição paralisaram-me por inteira. Sonhava em ter mais filhos, como mas não em tão curto espaço de tempo.
Sei que algumas mulheres abortariam tranquilamente embora por motivos religiosos eu jamais as aprovaria.
Interromper uma gravidez jamais passou pelo meu eu pensante somado ao meu lado espiritual. Não consigo imaginar uma mãe abortando sem o mínimo remorso. Interromper uma vida que cresce em si é brincar de Deus e comandar o curso do destino. É não permitir que um ser, que já sente desde a concepção, perca o direito de encarnar na família que ela no espaço etéreo escolhera para pertencer e continuar o curso da existência e da sua evolução humana. Matar uma vida aumentaria muito mais o meu desespero.
Cheguei ao consultório médico balbuciando: Eu não quero, eu não quero, eu não quero. Dra. Olga,ao ver o meu estado foi taxativa. Não, você não pode levar avante uma gravidez neste estado em que se encontra. E continuou: - Posso, com uma única injeção, interromper a gravidez que está ainda nas duas primeiras semanas.
O conflito tomou conta de mim: - Não, não posso e não o farei. Lembrei da minha própria história e conjecturei: Se minha mãe que se encontrava anêmica, tivesse tomado a segunda injeção, eu hoje não estaria aqui parindo vidas. Jamais mataria um filho ou uma filha. Esta atitude firme não diminuía o meu pânico e nem me fazia aceitar o infortúnio. A consciência pesava forte enquanto eu murmurava: - Não, eu não quero. Eu não aceito. Retornei a casa imaginando que o Deus que eu tanto temia e amava cuidaria de mim dando-me forças ou tendo misericórdia. Acho que toquei o coração divino e a Providência condoeu-se. O aborto veio espontaneamente. O sentimento de culpa jamais se apoderou de mim com seu dedo inquisidor.
Achei que no dia seguinte ao "aborto espontâneo" acordaria com a mesma garra de sempre, cuidando dois filhos, deixando-os na creche e voltando as minhas atividades do dia a dia. Voltara a ser o que era repleta de energia, inspiração e coragem.
A princípio achei que fora acometida de uma fadiga que passaria após uma semana de descanso e com ajuda de algumas vitaminas. Os dias foram passando, semana após semana sem que minha vivacidade e alegria voltasse. Percebi que um vazio imenso envolto numa tristeza indizível, roubara-me completamente a alegria de viver. O sentimento de culpa se apodera de mim seguido por milhões de perguntas que rodopiavam, sem freio, em minha cabeça. Estava enclausurada em mim mesmo e me flechava seguida por muitos dedos apontados para mim repetindo que eu não tinha nenhuma razão para aquele desânimo:
- Ela tem tudo que toda mulher sonha. Marido, boa condição financeira, pessoas cuidando das tarefas da casa e dois filhos lindos e perfeitos. O que lhe falta? Isto é preguiça ou fricote para chamar à atenção.
Estas flechas disparadas por parentes, vizinhos e amigos aumentavam ainda mais o meu sentimento de culpa. Como alguém poderia compreender algo que eu mesma não encontrava explicação?
Narrarei, nos próximos capítulos, um pouco da minha vida para provar que a depressão pode acometer pessoas fortes e guerreiras como sempre eu fui.
CAPÍTULO II - Infância
Nasci no sul da Bahia, num lugarejo sem água encanada e sem luz elétrica. Quando meus pais se fixaram neste arraial meu irmão mais velho tinha dois anos de idade e, eu já estava no ventre de minha mãe. Dois anos após o meu nascimento nasceu outra menina linda! Os três filhos amenizaram a perda do primeiro filho acometido por tétano neonatal, conhecido por mal de sete dias. Os filhos vinham ao mundo com ajuda de parteiras. sem o menor conhecimento da assepsia. Após o partoa, cortavam o cordão umbilical cobrindo-os depois com ervas, fumo ou pó de café.
Após dois anos meus pais se mudaram para outra vila, que segundo as conversas dos tropeiros, corria muito mais dinheiro. Encontraram ali a oportunidade de progredir comercialmente. O arraial, bem maior, era passagem de fazendeiros à cavalo e muitos trabalhadores rurais que ocupavam as terras locais.
Ali tinham duas escolas primárias, um pequeno comércio e muitas fazendas de gado, cacau, cana de açúcar, frutas legumes, farinha circundando o lugarejo. O arraial era bastante movimentado e logo meus pais fizeram ótimos amigos e a algazarra da criançada alegrava as noites de lua cheia. Prosperando, pouco a pouco, com a ajuda de nossa mãe, a nossa vida deu uma guinada e tanto. A feira era aos domingos e, se vendia de tudo. Os pequenos agricultores desciam para vender do amendoim aos doces e frutas mais diversas. O estabelecimento comercial de meu pai agora vendia tecidos, vestidos de noivas, bijuterias, perfumes, aviamentos para costura e as famosas chupetas, pirulitos e doces de bananas que eram expostos em frasqueiras. Nossa casa virou uma pequena confecção de embornais, saias, calções costurados por nossa mãe que pedalava cantando com meu pai as mais lindas canções da época. Ali nasceram mais três irmãos: o quarto que falecera aos dois anos e meio de difteria, mal que na época era incurável e os gêmeos. Pessoas mais espiritualizadas, diziam que os dois eram a encarnação do primeiro filho, que falecera com sete dias de nascido e do pequenino de dois anos.
Nosso pai, comprara um rádio que se tornara a coqueluche do momento no amado lugarejo. À noite, com as janelas escancaradas e a sala repleta de amigos ouvíamos o Repórter Esso, as novelas e às divas e cantores do rádio.
A nossa educação foi rígida por parte dos pais. Vivemos a "psicologia aplicada na época", chinelada, cinturão nas canelas, bolos com a escova de madeira, que servia para tirar os pelos da roupa. Por outro lado tivemos uma infância repleta de brincadeiras, de árvores, carrosséis, gangorras e muita ciranda.
Fui uma criança precoce e muito ajuizada. Líder nata, cantava, declamava e até discursava em palanques políticos representando a minha escola e as crianças do lugar. Embora parecesse tranquila em cima dos palcos, tinha um medo muito grande de errar. Me cobrava muito e me sentia responsável por qualquer pequeno acidente e incidente que ocorresse com meus irmãos e amigos. Não gostava de ver meus pais brigados e só conseguia dormir quando eles faziam as pazes. Estava sempre perto aparando as arestas e tentando que a paz reinasse.
Lembro-me que sofria de pavor noturno e de uma insônia que me deixava acordada até tarde da noite. As pessoas mais velhas da casa, primos e ajudantes, contavam histórias apavorantes de fantasmas e de onças que comiam as crianças enquanto dormia. Meu coração acelerava enquanto minha irmã dormia como um um doce anjo. Via caretas que desciam do telhado do quarto até perto de mim. Quando não suportava mais, corria para a cama dos meus. O quarto do casal era colado ao meu e da minha irmã, separado por uma porta que os dividia. Agradeço todos os dias por nunca os meus pais terem fechado a porta para mim.
As duas escolas relatadas na minha infância, não passavam do terceiro ano primário. Aos oito anos fui morar e estudar numa fazenda com uma tia que era uma exímia professora. Tive que estudar muito para compensar o estudo deficitário do arraial. Fiquei um ano afastada da minha família. Extremamente católicas, minhas tias, diariamente rezavam o terço e uma vez por mês o rosário. Decorei a Ladainha, o Credo e todas as rezas católicas. Fui preparada para a Primeira Comunhão e na véspera confessei os meus pecados ao padre. Não sei qual pecado. Nem por pensamento, palavras e obras. Aos oito anos as crianças, da época não sabiam como eram feitos os bebês que eram trazidos no bico da cegonha. Lembro-me que tive pesadelo à noite porque esqueci de confessar um pecado: Eu havia xingado merda.
Retornei um ano depois. Meu irmão já estudava num colégio interno. meus pais resolveram então alugar uma casa na cidade vizinha, onde o estudo era de primeira, embora algumas professoras ainda adotassem o uso da régua, da palmatória. Outras o castigo era ficar sem o recreio ou permanecer na sala após o termino da aula, estudando a lição que seria retomada meia hora depois. A diferença do estudo era grande e a dificuldade bateu feio. Muitas vezes fiquei estudando a lição de história ou geografia (matérias que não me atraiam por ter que decorar). Minha mãe, todos os meses vinha uma vez por semana para saber como estávamos nos comportando em casa e na escola. Antes da correção, que no que não seria menos que meia dúzia de bolos, sofríamos uma lavagem cerebral onde todas as regras não cumpridas durante o semestre ou o ano eram relembradas tiradas de um saco que não parava de encher. Meu pai, não se envolvia com os estudos mas bastava um olhar ou o dedo riste em direção ao nosso nariz, pra gente se tremer de medo. Levávamos a culpa mesmo sendo inocente, sem o direito de abrir a boca,
Se relato um pouco da minha personalidade infantil, é porque não sei se a depressão possa guardar algum gatilho ocorrido na infância que venha desencadear mais tarde.
CAPÍTULO III Juventude
Passados três anos, nosso pai adquiriu uma casa e um ponto comercial na vizinha cidade aonde a família se reuniu outra vez. Como migramos de um lugarejo, sofremos uma espécie de desdém o que hoje se chamaria de bullyng. Os jovens mais abastados nos desdenhavam com olhar e as mocinhas reparavam no modo em que nos vestíamos.
Isto não nos intimidou porque sobressaíamos nos palcos e até nas passarelas. Aos onze anos, já estudando na cidade, fui escolhida para viver o papel de uma menina de 8 anos (tinha baixa estatura) que dialogava com o pai e cantava uma linda canção de ninar . A mesma que a sua mãe cantava para me embalar, antes de ser posta para fora pelo marido que chegava bêbado em casa.
Após este drama, passei a ser escolhida como ------ em todas as peças teatrais. Estava ou cantando, declamando ou representando em qualquer comemoração cívica.
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